O que é ‘veículo usado’ para a legislação brasileira?

Uma causa recorrente, especialmente na seara aduaneira, diz respeito ao conceito de ‘veículo automotor usado’.

Talvez em decorrência do absurdo preço dos carros, conforme praticado no mercado brasileiro, várias pessoas preferem adquirir um veículo de alta qualidade no exterior, a comprar um veículo infinitamente inferior no mercado brasileiro.

Apenas para exemplificar (e deixar o leitor chocado), tomemos os preços praticados com o Hyundai Genesis novo.

Enquanto que nos Estados Unidos ele custa por volta de US$ 45,000 (quarenta e cinco mil dólares norte-americanos), no Brasil, o mesmo veículo, custa entre R$ 209.000,00 (duzentos e nove mil reais) e R$ 220.000,00 (duzentos e vinte mil reais).

Lembro que nos Estados Unidos também existem tributos, e, mesmo convertendo o valor pela cotação de US$ 1 = R$ 2, temos o valor final de R$ 90.000,00 (noventa mil reais) para o veículo em questão.

Enfim, acredito que o motivo para aquisição do veículo em mercado estrangeiro já resta demonstrado.

Pois bem. Em virtude de uma peculiaridade da legislação norte-americana, alguns desses veículos são adquiridos naquele mercado por uma empresa exportadora, que os adquire com o único intuito de exportação para o importador brasileiro, seja ele pessoa física ou jurídica.

Ocorre, entretanto, que algumas concessionárias são proibidas, por exigência contratual da marca, de vender veículos para que sejam revendidos no mercado internacional. Por tal proibição, no momento da primeira venda, especialmente para a empresa exportadora, a concessionária efetua o registro do veículo no órgão de trânsito estadual com jurisdição sobre a cidade onde ela está localizada.

Nesse momento é emitido o Certificate of Title (Certificado de Título), semelhante, para a legislação brasileira, ao registro do veículo no DETRAN.

Ressalte-se que inexiste o emplacamento.

Prosseguindo o modus operandi, a exportadora realiza todo o procedimento de exportação do veículo para o importador brasileiro, que, quando do início do despacho aduaneiro da mercadoria, se depara com uma exigência do fiscal, que o intima a apresentar o certificate of title.

E o documento é devidamente apresentado, com as formalidades em lei exigidas.

Qual não é a surpresa do importador quando, no lugar de uma mera exigência, recebe uma intimação dando conta de que está realizando a importação de veículo usado, e esse veículo tornou-se objeto de um Auto de Infração para Aplicação de Pena de Perdimento, com base em norma proibitiva criada pela Portaria DECEX n. 08/1991, que veda a importação de bens de consumo usados.

Para as ilustres autoridades aduaneiras brasileiras, aquele veículo tornou-se usado.

Porém, elas estão erradas.

Estão erradas, primeiro, porque a legislação americana é muito objetivo ao criar um conceito próprio para veículo automotor usado. Para os Estados Unidos, o veículo automotor apenas se tornará usado quando vendido ao consumidor final, que é aquele que possui manifesto intuito de fazer uso do veículo, e não revendê-lo.

Além disso, ainda que insistam os nossos auditores, a emissão de um certificado de título nos Estados Unidos não torna o veículo usado, pois, no caso em questão, ele não foi revendido para consumidor final.

Ainda, e para refutar, de uma vez por todas, os argumentos do Fisco, na maioria das vezes o exportador possui uma dealer’s license, que nada mais é senão uma autorização estadual para atuar na revenda de veículos.

Ocorre que essa dealer’s license é obtida sem qualquer razão lógica, já que ela é uma autorização estadual, não tendo relação com as exigências alfandegárias americanas. Ou seja, para fins de exportação, o exportador não precisa de uma dealer’s license.

Por outro lado, insistem os auditores com a tese de que o veículo em tela seria usado, inclusive indicando a legislação brasileira de trânsito. Ora, como aplicar a legislação nacional sobre um bem que sequer foi desembaraçado, que sequer está em circulação no mercado nacional?

Ainda, é manifesto que em favor do contribuinte pesa o fato do veículo estar fisicamente novo. Isso quer dizer que um laudo pericial evidenciará a questão, dirimindo quaisquer dúvidas e matando, de uma vez por todas, as alegações da autoridade aduaneira.

Nada, entretanto, é fácil.

As autoridades fiscais julgarão o processo para aplicação da pena de perdimento de forma surpreendentemente célere, o que obriga o importador a recorrer à Justiça, a fim de anular o Auto e, finalmente, desembaraçar o seu veículo importado, sob pena de vê-lo submetido a leilão e, pior, com o seu vizinho realizando a compra.

Agora, deixo uma questão no ar. Se o bem é alvo de contrabando, uma importação proibida, sendo manifestamente prejudicial ao povo brasileiro, como pode ser submetido a leilão e entrar em circulação no mercado nacional?

São situações estranhas, que só podem ser elucidadas pela nossa ilustre autoridade aduaneira.

(LUCIANO BUSHATSKY ANDRADE DE ALENCAR)

Venda no exterior para não consumidor não torna veículo importado usado

Se não rodou, carro importado duas vezes continua novo

Se o veículo já teve outro dono, mas nunca foi usado, deve ser considerado novo. Com esse entendimento, a 1ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal não enquadrou a importação de um automóvel Porsche dos Estados Unidos por um consumidor na proibição da legislação brasileira que veda a compra de automóveis usados do exterior. A sentença confirma liminar noticiada pela ConJur em outubro.

Para o juiz federal substituto da 1ª Vara do Distrito Federal Gabriel José Queiroz Neto, a Receita se baseou apenas no fato de que houve uma primeira importação do veículo para os Estados Unidos e, só depois, outra importação para o Brasil — essa última feita pelo autor da ação. O juiz discordou da posição da União, de que se o veículo já teve um primeiro proprietário, ainda que no exterior, será tido como usado.

“Não podemos dar prevalência às questões formais sobre as materiais, porque, em última análise, é o direito material que é fim buscado pelo cidadão”, disse o juiz na decisão. Para ele, mesmo que o veículo tenha sido objeto de uma transferência no exterior, se não foi utilizado para o fim a que se destina, ainda deve ser considerado novo.

O consumidor, autor da ação contra a União Federal, foi defendido pelo advogado Augusto Fauvel de Moraes, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo. Moraes alegou que a emissão de Certificate of Title — ou Certificado de Propriedade — não pode ser critério de avaliação para caraterizar o carro como novo ou usado, e sim se a venda foi ou não feita para o consumidor final.

O Certificado de Propriedade é emitido nos Estados Unidos em nome das exportadoras por opção de algumas fabricantes, como Porsche, BMW, Mercedez Benz, Ferrari e Maseratti. A ideia é proteger agentes autorizados que vendem produtos dessas marcas na região — a chamada proteção de território de venda. Para o fisco, porém, a relação é direta: se o veículo tem um certificado de propriedade, qualquer transação caracteriza revenda.

A União defendeu que o auto de infração traz informações que evidenciam a importação irregular. Afirmou que o Código Brasileiro de Trânsito considera que “o veículo passa a ser usado a partir do momento em que é registrado e licenciado para circulação e que a legislação norteamericana traz conceito semelhante de veículo usado.” Além disso, União afirmou que apenas os revendedores franqueados ou revendedores por atacado podem negociar veículos novos.

O juiz não entrou nas discussões em torno dos preços dos veículos cobrados no Brasil, que causam reflexos na tributação. Para ele, essa é uma questão governamental que transborda aos limites da lide. Ele afirmou que as regras citadas pelo fisco destinam-se apenas para questões internas brasileiras, “cujos contornos não parecem se preocupar especificamente com a questão das operações de importação”.

A União foi condenada ao pagamento das custas processuais e honorários fixados em R$ 3 mil.

Processo 23.907-04.2012.401.3400

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Livia Scocuglia é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2013