Importadores em um “Juízo sem juízo”

A importação é tratada pela indústria nacional como sua principal vilã.

Isso é fato público e notório, sendo, inclusive, alvo das principais políticas de estímulo exercidas pelo Governo da Presidente Dilma Rousseff, haja vista os aumentos de alíquotas, as barreiras criadas, os grupos de combate às irregularidades, etc.

Todavia, uma força oculta opera, também, contra os importadores.

Além da “mão forte” da Alfândega, que, por meio de grandes especialistas na área aduaneira aplicam sanções contra todas as irregularidades identificadas, os intervenientes no comércio exterior, especialmente da área de importação, devem litigar também contra os Juízes Federais, que, infelizmente, atuam como protetores da indústria nacional.

Digo isso pelos seguintes motivos:

1. Os juízes, quando recebem uma ação judicial que tenha em algum dos pólos uma empresa importadora, e do outro uma entidade governamental, discutindo questões aduaneiras, adota os argumentos da entidade governamental sempre que possível, invertendo o conceito de “boa-fé presumida” ensinado nas faculdades de Direito;

2. Por falta de uma especialização na área aduaneira, o que não é culpa dos magistrados, as ações aduaneiras acabam sendo jogadas na vala comum do Direito Tributário, não recebendo a devida atenção, o que implica em julgamentos desconexos, que na exacerbada maioria das vezes acaba sendo alvo de reforma nas instâncias superiores;

Os dois motivos acima são suficientes para denotar, por mais uma vez, a questão da insegurança jurídica em matéria de comércio exterior.

Atos administrativos que são, as ações tomadas pelos auditores fiscais que compõem os órgãos aduaneiros devem ser passíveis de revisão, seja esta de ofício, ou por meio de provocação pelo contribuinte/importador.

Todavia, como proceder à tal revisão interna, no próprio órgão administrativo, quando a matéria discutida diz respeito à aplicação da pena de perdimento, que é julgado em única instância e de forma surpreendentemente célere?

Por óbvio, só resta ao importador recorrer ao Poder Judiciário previamente à decisão administrativa, de modo a suspender o processo administrativo e discutir judicialmente a questão.

Porém, até por desconhecer completamente a matéria, os julgadores evitam suspender o processo administrativo, entendendo que prevalece o interesse público.

Muito nobre.

Todavia, do lado oposto, existe um empresário que não cometeu qualquer irregularidade, ou se cometeu, por muitas vezes poderia ter em seu favor aplicado o princípio da proporcionalidade, como bem defende o Dr. Caio Roberto Souto de Moura em recente obra.

Por outro lado, a visão fiscalista adotada pela maioria dos magistrados, bem como a figura de vilão criada contra os importadores, faz com que inexista presunção de boa-fé em favor deles, e também acaba que criando um preconceito quanto aos últimos.

E qual o motivo desse preconceito?

Empiricamente, observamos o dia-a-dia do noticiário e, quase que mensalmente surge uma grande operação orquestrada pela Polícia Federal, em conjunto com a Receita Federal do Brasil, para coibir a prática de contrabando/lavagem de dinheiro/descaminho que era perpetrado por operadores de comércio exterior.

Obviamente, tais operações são louváveis, desde que sejam punidos os fraudadores.

No entanto, essas operações só servem para jogar todos, os bons e os ruins, na mesma rede, pois no dia em que são deflagradas são alvo de um bombardeio de notícias na televisão, na internet, e nos demais meios de comunicação.

Nada obstante, ao passar o calor da novidade, os nomes que foram jogados na lama, apesar de terem se livrado das imputações que deram ensejo à operação, continuam na lama.

E os nossos doutos julgadores, influenciados por toda essa movimentação midiática, acabam adquirindo um pré-conceito, entendendo que os importadores estão errados, e eles que tentem provar o contrário, pelos meios em direito admitidos.

Por tal motivo, os importadores devem utilizar o procedimento administrativo, mesmo que ele seja inquisitorial, e o processo administrativo, para produzir as provas possíveis, inclusive junto às aduanas estrangeiras, sob pena de ser tarde demais quando for necessário ingressar em Juízo para desfazer o ato administrativo.

Por varas especializadas em comércio exterior

Tribunal especializado em comércio exterior

 Há no Brasil um processo gradual de judicialização dos temas de comércio exterior. De um lado, esse fenômeno é positivo, pois amplia o controle de legalidade dos atos do Poder Executivo em matéria de política comercial, sobretudo quando os meios de revisão pelo próprio Executivo se mostram insuficientes ou pouco transparentes. De outro lado, a crescente judicialização revela aspecto preocupante: a capacidade técnica muitas vezes deficitária do Poder Judiciário para lidar com complexas questões de comércio exterior, fato que pode resultar em decisões prejudiciais tanto para as empresas brasileiras e estrangeiras que atuam no país, quanto para o próprio governo. Como resposta para aprimorar o controle judicial das medidas de política comercial adotadas pelo Poder Executivo, o Brasil deveria criar varas federais especializadas em comércio exterior.

Desde 1947, o sistema multilateral de comércio requer a adoção de mecanismos judiciais para a revisão de atos do poder público relacionados ao comércio exterior. O Artigo X do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994, contém obrigação nesse sentido. O parágrafo 3 (b) do referido artigo afirma que cada parte deve manter tribunais ou procedimentos administrativos, arbitrais ou judiciais, para rever e corrigir, de forma imediata, atos administrativos relacionados a assuntos aduaneiros. Além disso, requer que tais tribunais ou procedimentos sejam independentes dos órgãos de governo responsáveis pela execução dos atos revistos e que suas decisões sejam obrigatórias. Assim, o acordo busca criar mecanismo que permita a revisão objetiva e imediata dos atos do poder público, bem como assegurar a neutralidade de tal processo. Cabe mencionar que a exigência de previsão de mecanismos judiciais não se limita ao GATT, mas também está presente em diversos outros acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC), como os que tratam de direitos antidumping, propriedade intelectual, serviços e subsídios e medidas compensatórias.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o requisito de revisão judicial foi implementado de forma ampla. Desde 1980, o país possui uma Corte de Comércio Internacional (CIT), com sede em Nova York e composta por nove juízes especializados em política comercial e direito da OMC.

O Brasil deveria criar varas federais especializadas em comércio exterior

A Corte possui jurisdição exclusiva sobre muitos dos principais temas do comércio exterior americano, incluindo: impostos, contribuições e taxas cobradas na importação; embargos e restrições quantitativas; defesa comercial (direitos antidumping, medidas compensatórias e salvaguardas); classificação aduaneira de mercadorias; drawback; políticas compensatórias para setores afetados pela abertura comercial; entre outros. Qualquer empresa exportadora ou importadora, nacional ou estrangeira, com presença no país, pode iniciar ação civil contra os órgãos do governo dos Estados Unidos. Além disso, as decisões da CIT podem ser revisadas pela Corte de Apelação do Circuito Federal (CAFC) e, caso envolvam matéria constitucional, pela Suprema Corte. Na prática, a maior parte das ações iniciadas junto à CIT diz respeito à defesa comercial e à classificação aduaneira.

O Brasil também cumpre a obrigação de permitir o reexame judicial, em especial por meio da garantia constitucional de amplo acesso ao Poder Judiciário para toda e qualquer lesão ou ameaça a direito, assegurada pelo artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal. No entanto, a tarefa fica a cargo de magistrados que, embora qualificados, nem sempre têm experiência suficiente em comércio internacional. Como conseqüência, o histórico do Judiciário brasileiro é contraditório. De um lado, há decisões de notória eficácia e qualidade técnica, como na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 101, proposta pelo Presidente da República em 2006 e deferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para por fim à disputa comercial com a União Européia, na OMC, em decorrência da proibição à importação de pneus remoldados. De outro lado, há decisões, principalmente de primeiro grau, pouco técnicas e confusas, que mantêm ou revertem importantes atos administrativos sem fundamentação adequada. Em casos extremos, encontram-se julgados que condenam a prática de “dumpring” (sic), que refazem cálculos técnicos elaborados pela autoridade administrativa de defesa comercial brasileira e, até mesmo, votos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que sustentam ser desnecessária a realização de investigação quando o dumping é “evidente”.

Nesse contexto, a criação de varas federais especializadas em comércio exterior teria efeito positivo significativo para assegurar o controle judicial eficaz e de qualidade da política comercial brasileira, trazendo ganhos tanto ao governo quanto ao setor privado. No caso do governo, as varas especializadas preservariam atos administrativos legais de elevada complexidade, funcionariam como instrumento para aperfeiçoar e chancelar a execução da política comercial e incentivariam decisões de caráter técnico. Já no caso do setor privado, elas garantiriam às empresas brasileiras e estrangeiras com operações no Brasil o direito de revisão judicial objetiva, independente e, sobretudo, especializada, dos atos do poder público relacionados ao comércio exterior.

Conforme comprova a experiência brasileira, o estabelecimento de varas especializadas contribui para o incremento na segurança jurídica, para a maior celeridade das decisões e para a redução do índice de reforma em segundo grau. Tais vantagens têm sido observadas a partir do funcionamento de varas em defesa do consumidor, meio ambiente, direito agrário, falência, previdência, propriedade intelectual, infância e juventude, violência doméstica contra a mulher, crimes contra o sistema financeiro, crime organizado e em diversas outras matérias.

Se o objetivo é caminhar rumo ao governo aberto e a uma política comercial condizente com as dimensões e aspirações do Brasil, a criação das varas federais especializadas em comércio exterior deve ser prioridade.

Abrão M. Árabe Neto e Diego Zancan Bonomo são, respectivamente, doutorando em direito internacional pela Universidade de São Paulo; diretor para políticas públicas da Seção Americana do Conselho Empresarial Brasil-Estados Unidos (Cebeu), ligada a U.S. Chamber of Commerce, em Washington

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